Transcrição de artigo publicado no saite CampoGrandeNews de 22/05/2012:
Quo Usque tandem …?
Heitor Freire (*)
O grande tribuno romano Marco Túlio Cícero imortalizou esta expressão ao dirigir-se a Lúcio Sérgio Catilina, que pretendia se apossar do poder em Roma para usurpá-lo em causa própria. Catilina só não tomou o poder devido à oposição firme e continuada de Cícero em quatro discursos que ficaram conhecidos como As Catilinárias. Quo usque tandem é uma expressão que se aplica sempre que há exorbitância continuada e arrogante por parte de um administrador público. E bem se aplica quanto à questão da Santa Casa, em pleno século XXI aqui em Campo Grande: Quo usque tandem, Nelsinho, abutere patientia nostra? [Até quando, Nelsinho, abusarás da nossa paciência?]
Não satisfeito com a “invasão” da Santa Casa, o prefeito Nelson Trad Filho extrapolou de suas atribuições ao tomar ilegalmente o prédio do Colégio Osvaldo Cruz, que havia sido doado em testamento pelo dr. Luiz Alexandre de Oliveira para a Associação Beneficente Santa Casa.
Como se sabe, o Colégio Osvaldo Cruz sempre foi particular, desde que foi criado pelo prof. Enzo Ciantelli e depois vendido para Wilson Barbosa Martins e José Fragelli, que o revenderam ao dr. Luiz Alexandre de Oliveira. Se a tomada da Santa Casa já foi ilegal, o que dizer, então, da atitude do prefeito ao designar como “escola municipal” um colégio que foi concebido e sempre funcionou como instituição privada?
Eu fui aluno do Osvaldo Cruz. Semanalmente, antes do início das aulas, ouvíamos as perorações apaixonadas do dr. Luiz Alexandre sobre o comportamento que deveríamos adotar como futuros cidadãos. Não dá para entender a decisão do prefeito. Reconhecido merecidamente, como um dos melhores administradores que a cidade já teve, nesse episódio da Santa Casa ele fez uma escolha que mancha sua trajetória política.
Em abril de 2013, por decisão judicial, a Associação Beneficente Santa Casa reassumirá o comando administrativo da instituição. Para isso, elaborou um projeto de gestão compartilhada que está sendo divulgado para outras entidades, tais como a Maçonaria e a Associação Comercial de Campo Grande. O objetivo é buscar a adesão de novos membros para o futuro conselho administrativo da Santa Casa. Representantes de classe dos médicos e dos enfermeiros também serão convidados para integrar o projeto. Em março a Associação se reuniu com o governador André Puccinelli, a fim de expor os detalhes do programa administrativo da nova diretoria da Santa Casa, recebendo o projeto com bastante simpatia e interesse.
No intuito de obter informações quanto à situação atual do hospital, a Associação Beneficente agendou uma reunião com o dr. Issam Moussa, presidente da junta interventora da Santa Casa, a quem foram solicitados documentos e informações da situação financeira e dos serviços prestados pelo hospital durante o período da intervenção do prefeito. O pedido foi negado pelos secretários de saúde do estado e do município.
Campo Grande precisa saber do que está acontecendo. A Associação Beneficente Santa Casa pretende realizar uma transição ordenada e responsável, para que se possa avaliar o que nos aguarda a partir de abril do ano que vem. A Associação se mantém firme no propósito de retomar a administração do hospital e do Colégio Osvaldo Cruz.
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(*) Heitor Freire é Associado da Associação Beneficente Santa Casa.
Comentário do blog:
Esse artigo foi publicado pelo portal às 6 hs 57 min de hoje, 22 de maio de 2012. Ás 6 horas da manhã, 1 hora antes, portanto, o Correio do Estado já mostrava, aos seus assinantes campograndenses, a virulenta resposta do prefeito (denominada “Sem Mistificação”).
Será que algum jornalista vai perguntar ao empresário o que aconteceu? Se não foi o próprio Freire (ou o portal, com seu consentimento) quem previamente mandou uma cópia ao prefeito, temos aí um caso de desvio ético ou de desbragada espionagem. Nenhuma das hipóteses nos causaria admiração, face à decadência moral das instituições públicas (e privadas) brasileiras.
Nelsinho não tem bons argumentos (não que os seus amigos discordantes da intervenção na Santa Casa os tenham). Indiretamente reconhecendo o desastre da gestão dos interventores, o prefeito, como sempre faz, bota a culpa em terceiros: neste caso, na “decisão judicial” (que ele mesmo provocou). E disfarça partindo para argumentação em estilo enrolation-populista.
Heitor Freire pode ser acusado (justa ou injustamente) de outras coisas, mas não de ser grosseiro e mal-educado. Seu texto, como se vê, faz uma crítica à intervenção, anos atrás, na administração da Santa Casa, fato que os campograndenses até agora não sabiam ser de responsabilidade maior do prefeito. Sempre se apresentou a intervenção como sendo feita por um nebuloso pool de autoridades (estaduais, municipais e de poderes paralelos).
Mas voltemos às palavras de Nelsinho. Ele usa, no início de seu texto, quatro parágrafos e 400 palavras para espinafrar, tipo petista dos anos 90, o latinismo do empresário.
Finge fingir que não entendeu o que quis dizer o discordante, num truque desbragadamente populista. Mas a verdade é que não entendeu, mesmo. Heitor não disse que a expressão Quo usque tandem significa “exorbitância continuada e arrogante por parte de um administrador público”. Disse que “é uma expressão que se aplica sempre que há exorbitância continuada e arrogante por parte de um administrador público”. Diferença nada sutil, ao alcance de qualquer estudante que tenha um bom conhecimento, não da língua latina, mas da língua portuguesa. Bom, reconheço, contra Freire, que é inadequado comparar Catilina, outsider que pretendia açambarcar o Poder romano, e Nelsinho, figura de proa de um Poder efetivo, bem plantado. Nem Cícero, nas circunstâncias atuais, obteria bons resultados de seus discursos, pois estaria apelando a um Poder menor contra um Poder maior (o contrário do que ocorreu na Roma antiga).
Freire não precisava adular o prefeito, considerando-o como um dos “melhores administradores que a cidade já teve”. Mesmo porque a adulação não fez o efeito pretendido. Qualquer pessoa que tenha o mínimo conhecimento de administração sabe que Nelsinho está sendo um dos piores prefeitos de Campo Grande, autor, por exemplo, da buraqueira (ao preço de dezenas de milhões de reais) do Rio Anhanduí e da desfiguração do Córrego Prosa (outros milhões) com jateamentos de cimento e aposição de sacos plásticos indegradáveis. E da feitura de um açude de vazante em lugar errado, depois de uma estranha e milionária (60 milhões) desapropriação. Além de co-autoria na Bolha Imobiliária que assola a população e já se estende por muitos outros municípios do Estado.
Outra parte do artigo do prefeito é empregada no elogio do TRAJE, denominação atual do antigo Colégio Osvaldo Cruz, que pertence à Associação Beneficente Santa Casa. É verdade, como diz Nelsinho, que a prefeitura encontrou o prédio histórico “relegado à condição de criadouro de mosquito da dengue, antro de marginais e território livre para consumo de drogas”. Ainda segundo o prefeito, “ali instalamos o Programa TRAJE – Travessia Educacional do Jovem Estudante, que promove a recuperação (de tempo e saber) e reinserção de mil alunos por ano, já tendo formado duas turmas do Primeiro Grau”.
Que foi instalado o Programa TRAJE, não há dúvida. Mas o prefeito, ou o grupo que ele representa, é obcecado demais por grandes obras e grandes soluções, de preferência caras. Assim, nunca sobra tempo ou dinheiro para verdadeiros Projetos Educacionais. Mil alunos numa escola é um rebanho bovino (ou talvez caprino), e não uma reunião de jovens. Mil jovens que iam mal no ensino regular foram arrebanhados e despejados nessa escola, usou-se todo o estoque de criatividade do Poder Público (que é bem pequeno) na criação do nome do projeto, e aguardou-se um milagre. Mas com quarenta alunos por classe, nem o próprio Jesus Cristo conseguiria bons resultados (ele não arriscou mais do que 12 discípulos). Pior ainda quando se trata de 40 jovens problemáticos. Conclusão: dois anos depois, nos chegam notícias de que nessa escola a maconha educa mais do que os professores, que têm sofrido agressões em lugar de agradecimentos. Na prática, apenas uma escola facilitadora de progressões estudantis. Um verdadeiro ulTRAJE…
Quanto à principal reclamação de Heitor Freire, o prefeito disponibiliza para o público (atendendo à Lei do Acesso à Informação, recém regulamentada) os rendimentos salariais dos servidores da municipalidade, mas recusa informar a Associação Beneficente Santa Casa (e também a nosotros, ciudadanos) sobre o real estado das contas e projetos do hospital sob a tal nebulosa intervenção. O prefeito vai “dar um jeitinho” de burlar as leis e a Constituição do país? Vamos aguardar.
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Post Scriptum 31/05/2012:
Em matéria da jornalista Tarybe Zottino, o saite Correio do Estado publicou ontem, 30/05/2012, a seguinte reportagem:
Juiz Manda Município e Governo [do Estado] Pagarem Dívida
O município de Campo Grande e o Governo do Estado foram condenados a cumprir determinações para a devolução da Santa Casa à Associação Beneficente de Campo Grande(ABCG), em 2013. Não poderão ser usados o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), o nome e as contas bancárias da associação; devem pagar aluguel à ABCG pelo uso das instalações do Colégio Osvaldo Cruz e fazer prestação de contas com todas as informações referentes aos sete anos de intervenção. A decisão foi proferida pelo juiz Amaury da Silva Kuklinski da Vara de Direitos Difusos e Coletivos, na última sexta-feira (25), conforme Wilson Teslenco, presidente da ABCG.
O prazo para a devolução do CNPJ, nome e contas bancárias, que vem sendo utilizados desde a requisição administrativa e também após intervenção judicial, foi fixado em 30 dias. “Todos os recursos financeiros e novos aportes de dinheiro decorrentes de operações regulares da administração do hospital devem ser geridas pelo município em conta própria”, disse Kuklinski.
Conforme o juiz, as dívidas da Santa Casa somam mais de R$ 120 milhões e devem ser assumidas e pagas pela prefeitura e pelo governo, 50% para cada um. Os secretários Municipal e Estadual de Saúde devem representar Campo Grande e Mato Grosso do Sul. Quando ao Colégio Osvaldo Cruz, o magistrado determinou que Campo Grande deverá pagar aluguel de 15 mil por mês para continuar usando as instalações. Os aluguéis atrasados, que somam R$ 330 mil, também terão de ser quitados. O prefeito de Campo Grande, Nelsinho Trad, afirmou que irá recorrer da decisão.
Hoje, a edição impressa do jornal, em matéria de Maria Matheus (“Prefeitura deve quitar dívida de R$ 14 mi da Santa Casa”), edita a notícia, acrescentando alguns dados, alguns deles transcritos abaixo:
7 anos de intervenção
A Santa Casa está sob intervenção do poder público desde janeiro de 2005. A Justiça definiu que o hospital volta ao comando da ABCG em 17 de maio de 2013.
Após a devolução do CNPJ e contas bancárias à ABCG no prazo de 30 dias, as operações da administração do hospital terão de ser geridas pelo município, em conta própria. Segundo o presidente da ABCG, Wilson Teslenco, usando o CNPJ e as contas da entidade filantrópica, ajunta interventora está transferindo dívidas para a próxima administração da Santa Casa.
Segundo o magistrado, o empréstimo de R$ 14 milhões foi contraído para pagar fornecedores e o 13º salário dos funcionários. “A sua própria realização contraria o escopo da intervenção realizada junto à Santa Casa, pois o objetivo foi a adequação da prestação de serviços e saneamento financeiro”, afirmou o magistrado.
As prestações de contas não estão sendo corretamente apresentadas. Por isso, o juiz pediu um relatório detalhado à junta interventora, com a relação de dívidas, credores, receitas, convênios celebrados desde a época da intervenção. O magistrado também exigiu dados referentes à obra de construção do Hospital do Trauma, que atenderá vítimas de acidentes de trânsito.
A sentença proibe a contratação de qualquer nova empresa de terceirização, “sem que seja devidamente justificada e decidida a sua necessidade”. Kuklinski determinou a apresentação de um relatório sobre os contratos de serviços terceirizados pela Santa Casa, discriminando prazos, custo e benefício, recebimentos e pagamentos, lucros, déficits, entre outros pontos. Ontem, Wilson Teslenco afirmou que, até 2004, existiam sete empresas terceirizadas. Hoje, segundo Teslenco, são mais de 30.
Dívida
A ABCG estima que a dívida da Santa Casa tenha aumentado de R$ 37 milhões para cerca de R% 120 milhões. “Os custos operacionais foram multiplicados por oito vezes, a quantidade de atendimentos foram reduzidos e os atendimentos de alta complexidade, como transplantes, foram praticamente suspensos”, denunciou Teslenco.
Ele citou que, além do empréstimo de R$ 14 milhões citado na decisão, outro, no valor de R$ 23 milhões, também foi contraído durante a intervenção. “O município e o Estado devem arcar com as despesas. Não pode ser por meio de financiamentos”, afirmou.
Teslenco afirma que o juiz mandou os interventores quitarem toda a dívida da Santa Casa, que soma R$ 120 milhões.
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Comentário Complementar do Blog:
Normalmente, quando uma organização se mostra ingovernável, é porque ela se tornou um pool de interesses financeiros compartimentados e conflitantes. A “administração” gasta toda a sua energia e recursos tentando acomodar esses interesses (afinal, são todos “amigos”), mas sempre às custas do Bem Público (que não tem efetiva representatividade nesse espaço).
A organização é mina de ouro que foi milimetricamente loteada. Ou uma vaca (programada para apenas 1 rebento) sugada em seu leite por 10 bezerros vorazes (haja bombeamento de leite artificial!…).
O ideal seria que as autoridades criassem dezenas de pequenos hospitais (de 50 a 100 leitos) pelo interior do Estado e pelos bairros da capital. Mas parece que os “administradores” não gostam de investimentos (escolas, presídios, hospitais) que vão exigir contratação de pessoal para o seu funcionamento. Afinal, funcionário público é problemático e não gera comissões e nem sequer (prêmio de consolação) votos contados.
Fica claro, cada vez mais, que Administrar órgãos públicos exige Engenharia Social, e não Engenharia Financeira. Prefeito não é para fazer Grandes Negócios com empreiteiras, imobiliárias e terceirizadas. Prefeito é para administrar a cidade, fazendo-a funcionar adequadamente. Requisito para a assunção do cargo, numa capital, deveria ser, não o conluio com Barões dos Negócios combinado com a simpatia pessoal, mas residência de 3 anos numa cidade da Noruega, Suécia ou Dinamarca (para aprender a lidar eficientemente com recursos abundantes), mais 2 anos em Cuba (para aprender a lidar com carência de recursos). Diminuir gradativamente a carga tributária (meio por cento ao ano) também ajudará (afinal, menos carniça, menos urubus).